No bojo do conjunto das reformas microeconômicas iniciadas no Governo de Michel Temer, a Lei nº 13.775/2018 veio para dispor sobre a emissão de duplicatas sob a forma escritural, entrando em vigência em abril de 2019. No início de maio deste ano, o Banco Central do Brasil (BACEN) finalmente regulamentou aspectos importantes da Lei, por meio da Resolução nº 4.815/2020 e da Circular nº 4.015/2020.
A duplicata é um título de crédito genuinamente brasileiro, instituído pela Lei nº 5.474/1968 e ligado à atividade empresarial. Trata-se de título causal, ou seja, sua emissão (saque) somente pode ser dar com base em transação comercial, de compra e venda mercantil ou prestação de serviços, devidamente amparada por nota fiscal (lastro).
Enquanto títulos de crédito tradicionais observam certo declínio em seu uso, como o cheque e a nota promissória, a duplicata mantém sua importância desde sua criação, juntamente com outros títulos mais modernos, a exemplo da Cédula de Crédito Bancário (CCB), da Letra de Crédito do Agronegócio (LCA) e da Letra de Crédito Imobiliário (LCI). A nova regulamentação finalmente vai trazer a duplicata ao mesmo patamar de segurança e negociabilidade desses outros títulos que já se submetem a sistemas de depósito e registro eletrônico, mantido por entidade autorizada para este fim, tal como a Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (CETIP).
Na verdade, as duplicatas já são há bastante tempo emitidas sob a forma escritural (não cartular, ou seja, sem a emissão física do título), o que inicialmente gerou divergências entre os doutrinadores sobre sua validade, até que viesse um assentamento da jurisprudência a esse respeito. Assim, a jurisprudência, bem como a doutrina, reconhecem o que se conveio a chamar de “desmaterialização” da duplicata¹, ou uma flexibilização da característica da cartularidade, já incompatível com a necessidade de uma circulação mais rápida e eficiente do crédito – exatamente o propósito da criação dos títulos de crédito desde seus primórdios. A duplicata já caminhava no sentido de se desprender da estrita cartularidade, admitindo, por exemplo, recibo em apartado, a tornar desnecessária a devolução do título.
Neste sentido, cumpre destacar trecho do citado acórdão da relatoria da Min. Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, referindo à doutrina de Paulo Salvador Frontini: “A praxe mercantil aliou-se ao desenvolvimento da tecnologia e desmaterializou a duplicata, transformando-a em ‘registros eletromagnéticos, transmitidos pelo computador pelo comerciante ao banco. O banco, a seu turno, faz a cobrança, mediante expedição de simples aviso ao devedor – os chamados ‘boletos’, de tal sorte que o título em si, na sua expressão de cártula, somente vai surgir se o devedor se mostrar inadimplente. Do contrário, – o que corresponde à imensa maioria dos casos – a duplicata mercantil atém-se a uma potencialidade que permite se lhe sugira a designação de duplicata virtual”².
Cumpre aqui lembrar que o Código Civil (artigo 889, §3º) desde 2002 já admitia, como título de crédito, documento emitido a partir de caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente, constando da escrituração do emitente.
O que se adotou para a duplicata, antes da nova regulamentação, foi uma sistemática de emissão do “boleto” e o trânsito informatizado de dados para a cobrança e a liquidação do título. Porém, ainda sem interoperabilidade nem órgão centralizador do registro dessas transações para que houvesse maior segurança para todos os envolvidos, especialmente instituições financeiras e fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC).
Como regra, pela nova Lei, a emissão da duplicata sob a forma escritural será feita mediante lançamento em sistema eletrônico de escrituração (art. 2º da lei) gerido por quaisquer das entidades que sejam autorizadas pela administração federal. Deverá ser criada, portanto, uma Central Nacional de Registro de Títulos de Documentos.
Caberá à entidade responsável pelo registro nacional das duplicatas, além do registro geral dos títulos emitidos, sua apresentação, devolução e formalização do pagamento, o controle da transferência de titularidade, a prática dos atos cambiais (endosso e aval), a inclusão de indicações, informações ou declarações referentes à operação com base na qual a duplicata foi emitida, além da inclusão de informações a respeito de ônus e gravames constituídos sobre as duplicatas.
A criação da duplicata escritural não extingue a duplicata emitida em papel (cartular), embora esta seja de difícil verificação prática, possivelmente restritas a localidades menos desenvolvidas e com menor acesso aos recursos de informática.
O artigo 7º da Lei prevê que a duplicata escritural é título executivo extrajudicial e para a sua cobrança judicial deverá estar acompanhada de extrato expedido pelos gestores dos sistemas eletrônicos de escrituração. O referido extrato conterá os elementos necessários à identificação da duplicata, nos termos da Lei nº 5.474/68, art. 2º, além da data da sua emissão, informações sobre ônus e gravames, entre outros. Importante frisar que, às duplicatas eletrônicas, restam ainda aplicáveis, de forma subsidiária, as disposições da Lei nº 5.474/68.
É possível que a sistemática de apresentação, recusa e aceite, atualmente em desuso em razão da desmaterialização do título, seja retomada em decorrência de uma facilidade na prática desses atos cambiais próprios da duplicata, manejados todos de forma eletrônica. A Lei nº 13.775/2018 inclusive alterou referidos prazos, dispondo-os, respectivamente, em 2 (dois), 10 (dez) e 15 (quinze) dias.
Para tornar o protesto cambial compatível com a nova regulamentação, a Lei alterou o artigo 8º e adicionou o artigo 41-A à Lei nº 9.492/1997 (Lei do Protesto), estabelecendo novos procedimentos a serem observados pelos Tabeliães de Protesto, a acabar com a insegurança latente ao usual protesto por indicações.
Outra fundamental inovação da Lei nº 13.775/18 está contida no artigo 10, que traz a previsão de que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que vedem, limitem ou onerem, de forma direta ou indireta a emissão ou a circulação de duplicatas emitidas sob a forma cartular ou escritural.
O dispositivo do referido artigo 10 – a proibição de cláusulas contratuais que vedem a circulação de duplicatas – bem como todo o sistema de registro e controle que é criado com a promulgação da Lei, possui o efeito direto de beneficiar a atividade econômica, vedando-se o impedimento contratual enfrentado pelos pequenos fornecedores em suas relações com os bancos que são impedidos de utilizar as duplicatas para fins de obtenção de crédito como capital de giro a menor custo (garantindo-se o crédito com as próprias duplicatas).
A recente regulamentação do BACEN dispôs sobre pontos importantes para que a Lei tenha eficácia. A Resolução nº 4.815/2020 trata das operações de desconto de recebíveis e operações de crédito garantidas por recebíveis, ou seja, de contratos bancários bastante comuns, sendo estabelecido um calendário de obrigatoriedade na utilização de duplicatas escriturais, conforme o porte da empresa negociadora, de 360 dias para as de grande porte até 720 dias para as de pequeno porte, contados da aprovação, pelo BACEN, da “Convenção” trazida pela Circular nº 4.016/2020. Referida Circular “dispõe sobre a atividade de escrituração da duplicata escritural, sobre o sistema eletrônico de escrituração gerido por entidade autorizada a exercer essa atividade e sobre o registro ou depósito centralizado e a negociação desses títulos de crédito”.
A “Convenção” prevista no artigo 20 da Circular nº 4.016/2020 é, desta forma, um ponto importantíssimo, trazendo o marco inicial para a contagem do prazo de obrigatoriedade de transação eletrônica de duplicatas com instituições financeiras, seja para operações de desconto ou como forma de garantia em operações de crédito. O processo de elaboração dessa Convenção, que deverá contar com a participação do BACEN, deverá ser realizado pelas entidades autorizadas a realizar a atividade de registro ou de depósito centralizado de duplicatas.
Entre outros benefícios estará o fim da necessidade de se manter o Livro de Registro de Duplicatas, a facilitação da cobrança, execução e negociação dos créditos que representam. Enfim, diminuirá o tempo gasto com os registros e protestos, trazendo maior agilidade administrativa para as empresas.
Cabe agora às entidades e escrituradoras e de depósito estabelecerem rapidamente, com a participação do BACEN, a Convenção de que trata o artigo 20 da Circular nº 4.016/2020, para que o mais cedo possível os agentes econômicos comecem a consolidar a praxe mercantil da emissão das duplicatas sob a forma escritural e com registro eletrônico. Os benefícios se darão universalmente, tanto para os agentes econômicos que emitem as duplicatas, quanto para as instituições financeiras, os fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) e as factorings.
Outros efeitos práticos poderão também decorrer dessa centralização de informações, tais como a possibilidade de penhora de recebíveis em execuções judiciais, cabendo ao BACEN e às entidades escrituradoras a integração dos sistemas de penhora online (BacenJud) para maior eficácia nas medidas de recuperação de crédito.
A Lei e sua respectiva regulamentação vieram para modernizar e dar segurança jurídica para a utilização da duplicata eletrônica, o que é de suma importância para incentivar a circulação do crédito e impulsionar o aquecimento da economia, durante e após o momento de grave crise econômica atualmente vivido, e especialmente para as pequenas e médias empresas – muitas vezes vistas de forma restritiva pelas instituições financeiras em razão da alta exposição ao risco.
Assim, a partir da entrada em vigor do novo sistema de emissão de duplicatas benefícios imediatos deverão ser sentidos pela sociedade com a redução do risco e dos custos de transação. Possivelmente haverá queda significativa na emissão de duplicatas frias (sem lastro) ou em duplicidade. A quantidade de ações judiciais que visam a demonstrar a invalidade ou a inexigibilidade de créditos representados por duplicatas sem lastro, recusadas ou já adimplidas poderá reduzir significativamente, assim como os processos de recuperação de crédito poderão ganhar maior efetividade.
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¹ Neste sentido: Superior Tribunal de Justiça – Recurso Especial nº 1.024.691 – PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi.
² FRONTINI, Paulo Salvador. “Títulos de crédito e títulos circulatórios: que futuro a informática lhes reserva? Rol e funções à vista de sua crescente desmaterialização”. Revista dos Tribunais 730/60.
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Luiz Gustavo Friggi Rodrigues e Sérgio Teixeira de Andrade Filho, sócios do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.