Bruno Moreira Kowalski
O tema referido no título desse pequeno artigo vem sendo objeto de interessantes discussões desde que a Lei nº 8.429/92 foi publicada.
A redação original do §1º, do artigo 17, dispunha ser vedada a transação, o acordo ou a conciliação nas ações dessa natureza. Houve tentativas de alteração do dispositivo seja por meio de Medida Provisória (MP 703/2015, não convertida em lei) ou por meio de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.980, ajuizada pelo PTB sob o argumento de que a vedação legal viola os princípios da eficiência administrativa, da tutela jurisdicional efetiva e da razoável duração do processo, ainda não julgada).
Portanto, desde que editada, a Lei de Improbidade Administrativa expressamente proibia a celebração de ajustes entre o autor da ação e o réu acusado pela prática do ilícito. Nada obstante essa realidade, iniciativas do Ministério Público, a superveniência de leis regulamentadoras de disciplinas em outros campos do Direito e decisões judiciais fizeram com que o dispositivo passasse a ser interpretado de modo não literal. Dito de modo mais direto, muito embora o artigo em referência vedasse expressamente a celebração de acordos, o Ministério Público – embora não o único legitimado a propor as ações desse tipo, mas certamente o seu principal protagonista – passou nos últimos anos a entabular acordos com pessoas acusadas pela prática de ato ímprobo tanto no curso do processo judicial, como na fase antecedente à distribuição da ação, ou seja, no âmbito de inquéritos civis.
Em relação às alterações legislativas, o que se viu desde a edição da LIA foi, primeiramente, a edição de normas que preveem mecanismos de consensualidade na relação entre o Estado e particulares; nesse sentido, podem ser citadas a Lei nº 13.129/2015, a qual regula a utilização da arbitragem pela Administração Púbica, e a Lei nº 13.140/2015, que dispõe de forma ampla sobre a autocomposição de conflitos no âmbito do Poder Público. Especificamente no campo do Direito Sancionador, observou-se a introdução do acordo de leniência na esfera antitruste (Lei nº 12.529/11) e na esfera anticorrupção (Lei nº 12.846/13).
Mais recentemente, sobreveio a Lei nº 13.655/18, a qual introduz disposições na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público e cujo artigo 26 determina que “para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial.”
Tais normas, por certo, modificaram radicalmente o modo de interpretação do §1º, do artigo 17 da LIA.
Desse modo, e nada obstante a vedação legal prevista na redação original do dispositivo, a Resolução 179/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público dispõe ser “cabível o compromisso de ajustamento de conduta nas hipóteses configuradoras de improbidade administrativa, sem prejuízo do ressarcimento ao erário e da aplicação de uma ou algumas das sanções previstas em lei, de acordo com a conduta ou o ato praticado.” Mais além, por meio da Nota Técnica 1/2017, editada pela sua 5ª Câmara de Coordenação e Revisão, o Ministério Público Federal reconheceu que a previsão de possibilidade de celebração de acordos de leniência nas ações fundadas na Lei Anticorrupção teria inclusive derrogado a Lei de Improbidade Administrativa nesse particular, de modo que a realização de acordos, nestas ações, já seria juridicamente possível.¹
Com base nessas orientações internas, o Ministério Público efetivamente promoveu acordos com particulares acusados da prática de ato ímprobo mesmo ao tempo em que vigia a proibição legal do §1º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92. Entre outros, pode ser referido, até pela relevância dos valores envolvidos, o “Termo de Autocomposição para Ato de Improbidade” firmado entre o MPSP e concessionária de serviços públicos, no qual se previu o pagamento da quantia de R$ 81,5 milhões a título de reparação de danos e multa em troca do arquivamento de inquérito que havia sido instaurado para investigar o pagamento de caixa dois em campanhas eleitorais para ex-governadores e deputados do Estado.
Além da construção de entendimento e iniciativas do próprio Ministério Público, decisões judiciais já demonstravam a viabilidade jurídica da formalização de acordos em ações por ato de improbidade administrativa. Em ao menos dois casos paradigmáticos, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a validade de acordos celebrados pelo Parquet com acusados pela prática de atos ímprobos.
No Agravo de Instrumento nº 2216000-33.2018.8.26.0000, relatado pelo Des. Osvaldo Magalhães, a Corte Paulista manteve decisão de primeiro grau que homologava acordo firmado com determinada empresa do ramo da construção civil. Na decisão que restou confirmada, o juízo singular havia decidido pela possibilidade de celebração do ajuste em virtude da previsão contida nas Leis nº 12.850/2013 e 13.140/2015, bem como no artigo 190 do Código de Processo Civil. Em acréscimo, o relator do recurso sinalizou ainda que “o artigo 32, inciso II e o artigo 36, § 4º da Lei nº 13.140/2015 efetivamente dão respaldo jurídico ao acordo entabulado, ao preverem a possibilidade de criação pelos Estados e Municípios de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos para ‘avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público’, sendo que ‘nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação de que trata o caput dependerá da anuência expressa do juiz da causa ou do Ministro Relator’”.
No Agravo de Instrumento nº 2215087-51.2018.8.26.0000, o TJSP também manteve acordo firmado entre o Ministério Público e particular por entender que o §1º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/92 estaria revogado em razão do já citado artigo 26 da Lei nº 13.655/18. Nos termos do voto do relator Cláudio Augusto Pedrassi, “diante de tal texto, passou a ser viável a celebração de TACs (termos de ajustamento de conduta), bem como que tais termos sejam celebrados nos processos em curso, se viável for, podendo por fim a demanda.”
Tais iniciativas e decisões pontuais, entretanto, jamais eliminaram as incertezas que sempre circundaram o tema desde que a LIA foi editada. A discussão, porém, restou definitivamente superada com a publicação da Lei nº 13.964/2019, que modificou o §1º, do artigo 17 da Lei nº 8.429/92 para dispor que “as ações de que trata este artigo admitem a celebração de acordo de não persecução cível, nos termos desta Lei.”
Algumas questões em torno dessa alteração legislativa merecem destaque.
A primeira delas diz respeito ao momento em que se admite a celebração do acordo. O §10-A, do mesmo artigo 17, dispõe que “havendo a possibilidade de solução consensual, poderão as partes requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por prazo não superior a 90 (noventa) dias.” Ao que tudo indica, a formalização do ajuste realmente só pode ser feita até o momento da contestação, isto é, ou na fase de inquérito civil ou no curso do prazo de defesa, após o juiz ter admitido a viabilidade da pretensão do Ministério Púbico e determinado a citação do réu para contestar. Essa conclusão é reforçada ainda pela constatação de que houve veto ao §2º, do artigo 17-A, o qual previa que “o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade.” Na mensagem encaminhada ao Senado Federal, destacou-se que “a propositura legislativa, ao determinar que o acordo também poderá ser celebrado no curso de ação de improbidade, contraria o interesse público por ir de encontro à garantia da efetividade da transação e do alcance de melhores resultados, comprometendo a própria eficiência da norma jurídica que assegura a sua realização, uma vez que o agente infrator estaria sendo incentivado a continuar no trâmite da ação judicial, visto que disporia, por lei, de um instrumento futuro com possibilidade de transação.”
No meu entendimento, no entanto, a razão do veto não convence.
Primeiro por uma questão óbvia, qual seja, havendo a possibilidade de celebração do acordo, não me parece possível que algum réu acusado pela prática de ato ímprobo desejará “continuar no trâmite da ação” como indica a mensagem se ele pode, a partir do ajuste celebrado com o autor da demanda, quitar a sua obrigação e simplesmente não mais fazer parte da relação processual para suportar as graves sanções que a lei lhe impõe.
E segundo porque as condições objetivas e subjetivas para a celebração de um ajuste podem surgir a qualquer momento do processo, e não apenas nesse curto espaço de tempo que está definido pelos termos da lei até a apresentação da contestação. Dessa forma, embora a iniciativa seja louvável, quer me parecer que a previsão legislativa teria limitado de modo pouco inteligente a possibilidade de celebração dos acordos nas ações de improbidade administrativa. Uma solução para a superação desse problema talvez seja a utilização da previsão genérica contida no inciso II, c.c. §4º, do artigo 313 do Código de Processo Civil, segundo o qual o processo fica suspenso pela convenção das partes pelo prazo não superior a seis meses. Com base nesse artigo, Ministério Público e réu poderiam pleitear a suspensão do processo para discutir os termos de eventual acordo, pondo ou não fim a demanda a depender do resultado das negociações.
Com relação ao tema, penso que devemos aguardar o desenrolar de novas ações para saber como o Ministério Público e o Poder Judiciário irão doravante se pronunciar a respeito da matéria.
Duas considerações finais a respeito desses acordos demandam atenção especial.
A primeira delas diz respeito à participação do juiz na sua homologação. Embora a Lei nº 8.429/92 contenha disposições sancionatórias e de natureza penal, não há mais dúvidas de que a ação que ela disciplina ostenta natureza cível; tanto é assim que o rito estabelecido no próprio artigo 17 para o processamento dessas ações é o rito comum do Código de Processo Civil. No mais, a jurisprudência desde há muito está consolidada no sentido de que essas ações devem ser processados na primeira instância mesmo quando dirigidas contra agentes políticos que gozam de prerrogativa de foro nos termos da Constituição Federal.²
Em assim sendo, diversamente do que sucede nos acordos celebrados na esfera penal, quer me parecer que o ajustamento firmado entre Ministério Público e réu acusado pela prática de ato ímprobo se caracteriza como um negócio jurídico e deve ser analisado pelo magistrado nos termos do artigo 104 do Código Civil a fim de se verificar apenas e tão somente se estão presentes as seguintes condições, quais sejam, se o acordo foi firmado por agente capaz, se o seu objeto é lícito, possível, determinado ou determinável e se a forma é prescrita ou não defesa em lei.
A segunda consideração diz respeito à legitimidade e ao alcance para a propositura do acordo nas ações dessa natureza.
A alteração legislativa recebeu outro veto além daquele já citado. O caput do artigo 17-A dispunha que “o Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, desde que, ao menos, advenham os seguintes resultados.” E os três incisos seguintes dispunham quais seriam as condições mínimas para a celebração do acordo³.
Esses dispositivos foram vetados por uma questão evidente, qual seja, o Ministério Público não é o único legitimado a entabular acordos nas ações dessa natureza; conforme o artigo 17 dispõe, a ação poderá ser ajuizada pelo MP ou pela pessoa jurídica lesada. Então, se a Fazenda Pública que foi vítima do ato ímprobo pode ajuizar a ação de improbidade, parece evidente que ela também pode entabular acordos para colocar fim ao processo.
No mais, realmente não me parece prudente que, tratando-se de ação de natureza cível, a lei impusesse balizas à celebração do acordo, ditando sob quais condições a ação pudesse ser extinta. Nesse sentido, é razoável afirmar que os ajustes podem ser celebrados sem as amarras previstas no texto original anterior ao veto, sendo juridicamente possível às partes tratar de modo amplo e irrestrito a respeito das obrigações a que ficarão vinculadas por meio do compromisso, desde que respeitadas, como salientado, as condicionantes do artigo 104 do Código Civil.
Eram essas as breves considerações que entendo pertinentes a respeito da novel alteração legislativa.
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¹ “(…) houve derrogação da vedação prevista no art. 17, § 1º, da LIA, de modo a ser possível que no acordo de leniência se contemple a aplicação da punição, por ato de improbidade administrativa, ajustada com o colaborador-infrator. Tal proceder decorre da observância da confiança, boa-fé e expectativa legítima, considerada a renúncia da pessoa jurídica ao direito de não autoincriminação e a sua efetiva colaboração com as investigações e coleta de provas. Ademais, sem que se observem tais peculiaridades, o acordo de leniência perde a sua eficiência e seu potencial de combate à corrupção, sabido, no mais, que um direito que seja socialmente ineficiente, caduca e perde sua legitimidade.”
² Nesse sentido: AgRg na AIA 32/AM, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 13.5.2016.
³ I – o integral ressarcimento do dano;
II – a reversão, à pessoa jurídica lesada, da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados;
III – o pagamento de multa de até 20% (vinte por cento) do valor do dano ou da vantagem auferida, atendendo a situação econômica do agente.