Beatriz Busatto Beréa Grassia e Juliana Abibi Soares da Silva*
Em 06 de fevereiro de 2020, o Governo Federal editou a Lei federal nº 13.979 com o objetivo de estabelecer medidas gerais de emergência com relação à saúde pública, de importância internacional, para o combate da Covid-19 em nosso país.
Uma dessas medidas, constante no artigo 3º, inciso III, da referida Lei, prevê que “para o enfretamento da emergência da saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, as autoridades poderão adotar no âmbito de suas competências, dentre outras, […] a determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) teste laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas; d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou e) tratamentos médicos específicos […]”.
Tal medida, já adotada em diversos países, como na Alemanha, teria como propósito obrigar a população a realizar o teste diagnóstico da Covid-19, tratamento compulsório específico, dentre outras providências.
Contudo, no Brasil, sob a ótica da Constituição Federal, será que medidas dessa natureza não afrontarias direitos fundamentais constitucionalmente protegidos? A nossa Lei Maior traz como fundamental o direito à intimidade do indivíduo, assegurando, inclusive, a possibilidade de indenização por danos materiais e morais no caso desse direito ser violado (artigo 5º, inciso X, da CF). Seguindo essa linha de pensamento, o dispositivo legal que impõe a realização compulsória de exame médico para diagnóstico de doença seria inconstitucional, pois violaria a intimidade de cada cidadão.
Por outro lado, estamos diante de um vírus cujo contágio se dá pelo ar, ou seja, é impossível inibi-lo. Além disso, ainda não há vacina contra o Covid-19, sendo que as únicas formas de prevenção são o isolamento social, a utilização de máscaras de proteção e a higienização das mãos – que são importantes e eficazes, mas não 100% seguras contra a contaminação.
E, ainda, há quem, mesmo infectado, não apresente qualquer dos sintomas da Covid-19, sendo tais casos considerados pelos órgãos da saúde como os principais vetores de proliferação do vírus.
Assim, muitos entendem que a forma mais eficaz de não proliferação é a identificação dos portadores do Covid-19, para que se adotem as medidas necessárias de contenção da doença até que uma vacina seja criada.
Diante dessa situação, a saúde pública, como direito e interesse coletivo – também salvaguardado pela Constituição Federal – não se sobreporia ao interesse dos particulares (direito à intimidade)? Isto é, levando em consideração a forma de contágio do vírus (pelo ar), a inexistência de vacina e a presença de pessoas assintomáticas como potenciais vetores, não seria, portanto, constitucional a obrigatoriedade na realização do exame diagnóstico da Covid-19, uma vez que o interesse público se sobrepõe ao particular?
E mais: sendo obrigatório o teste, a recusa de sua realização presumiria ou não a confirmação da portabilidade do vírus? Alguma sanção deveria ser aplicada a quem se recusasse em realizar o teste?
Em situação semelhante, em que se discute o direito à intimidade em face do interesse público, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que, em ações de investigação de paternidade, aquele que se recusa a realizar o respectivo teste será considerado presumidamente pai da criança, sendo realizado o registro civil com o nome do pai cuja paternidade se presume e a assunção das devidas obrigações. Embora a intimidade seja preservada, há uma presunção de paternidade que obriga o indivíduo a arcar com os direitos e responsabilidades como se comprovada estivesse a paternidade.
Outra situação em que há conflito entre interesse público e privado é a hipótese em que o réu não está obrigado a responder perguntas que o incriminem, resguardando-se no direito de ficar calado, sem que isso implique qualquer punição ou reconhecimento de que os fatos indagados são verdadeiros.
Por fim, temos um exemplo de meio termo. A recusa do indivíduo em realizar o teste do bafômetro ou o exame de sangue para detectar a presença de álcool no seu organismo não gera a presunção de que esteja alcoolizado, porém existe a previsão legal de aplicação de multa na hipótese de tal recusa, além de o motorista não poder deixar o local dirigindo o veículo, devendo ser acompanhado por pessoa que esteja sóbria.
Nesse terceiro exemplo, não se presume que o motorista esteja embriagado, mas a sua recusa em realizar o teste enseja a adoção de medidas assecuratórias, ainda que não tão severas quanto as que seriam aplicadas no caso da confirmação da embriaguez, de modo que, caso de fato esteja embriagado, não conduza o veículo em tal estado. Assim, a intimidade é respeitada, mas medidas de segurança são adotadas.
Diante desses exemplos, nota-se que não há uma “resposta correta” para as questões acima levantadas quanto à constitucionalidade da norma que prevê a determinação compulsória da realização de exame médico para diagnosticar a Covid-19.
No entanto, das três hipóteses apresentadas, o meio termo (recusa no teste do bafômetro) nos parece a mais razoável, pois, no caso da Covid-19 não se presumiria uma condição (contaminação), respeitando-se a intimidade do cidadão (de não ser testado), mas adotando-se medidas de segurança (como isolamento por determinado período de tempo), de forma a evitar um prejuízo coletivo (proliferação da doença).
Todavia, a despeito da discussão aqui trazida, tal determinação esbarra em outra questão de ordem pública, qual seja, a disponibilização de testes para toda a população pelo Poder Público, através do Sistema Único de Saúde.
É de conhecimento de todos que o Poder Público não possui testes suficientes, esvaziando-se a hipótese de obrigar a realização do exame por todos. Sendo assim, se for de interesse da autoridade competente determinar que sejam realizados compulsoriamente exames para diagnóstico da Covid-19 – por ser de interesse público o controle de tal doença –, esta mesma autoridade tem que garantir o fornecimento de testes de diagnósticos a todos.
Portanto, ainda que constitucional a norma que autoriza a determinação compulsória de exame médico, o Poder Público não possui condições de implementá-la em prática. E, em caso de tal norma ser inconstitucional, pouca diferença fará, pois, repita-se, não há meios de aplicá-la ao caso concreto.
Logo, percebe-se que se trata de previsão legal muito interessante na teoria, porém quase que impossível de ser aplicada, independentemente da (in)constitucionalidade.
E assim seguimos de “mãos dadas”, mesmos separados, aguardando medidas realmente eficazes de um governo que permanece flutuante diante da pandemia.
*Beatriz Busatto Beréa Grassia e Juliana Abibi Soares da Silva são, respectivamente, advogada e sócia da área de direito administrativo do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.